sábado, 23 de junho de 2007

"VÉSPERA DE SÃO JOÃO"

"VÉSPERA DE SÃO JOÃO"

Anualmente, ao passar pelas datas festivas, lavro o flagrante de meu saudosismo e sinto que estou envelhecendo mais rápido do que realmente mereço. Agora, quando escrevo estas linhas, é véspera de João Batista e o barulho dos fogos, os gritos das crianças e a rancheira sanfonada no rádio da vizinha me infelicitam e nostalgiam, porque é mais uma alegria entre tantas que já não me atingem. Sei que fui um péssimo soltador de balões e que nenhum dos que acendi, passou de três metros de altura sem pegar fogo. Jamais enchi os bolsos de bombas, nunca tentei acender o estopim de uma ronqueira.
As noites de junho, porém, eram minhas de um jeito especial, no cheiro, na frieza dos ventos, nas cores de seus enfeites. A fartura das comidas à base de milho verde, canjicas, pamonhas, o próprio milho cozido ou assado, os pratos enormes espalhados pela mesa, a vaidade de mamãe ao explicar seu jeito inimitável de dosar o leite de côco, tudo isso era uma emoção, da qual o estômago e o espírito participavam, cobrindo-nos de orgulho pelo que éramos, unindo-nos num laço de ternura por aquelas mãos quituteiras afeitas aos mistérios do sal e do açúcar.
A cozinha de nossa casa era um laboratório: mais de vinte pessoas mexendo alguidares, dando ponto em goiabadas, torrando castanhas de caju, desnudando espigas, ralando côco, davam-se de corpo e alma ao êxito da festa. Dali saíam dois bolos inesquecíveis: o de mandioca e o pé-de-moleque, que traziam gente de longe para saboreá-los com café torrado e moído no quintal de nosso sítio. Quando dava meia-noite tinham início as advinhações. Minhas primas iam cravar facas nos troncos das bananeiras e, no dia seguinte, não sei como nem por que, amanhecia uma letra na lâmina da faca. Cada uma ia buscar um copo com água até a metade, derramava uma clara de ovo dentro e, misteriosamente, no fundo do copo, aparecia uma igreja ou um cemitério, agourando mortes e casamentos. Nos pratos fundos, cheios de água também, pingavam cera de vela até aparecer uma letra boiando. Ante meus olhos ansiosos e assustados, tudo aquilo era verdade, predições celestiais.
Testemunhei pessoas do engenho, com os pés descalços, andando em cima do braseiro e saírem rindo do outro lado, dando vivas a João Batista e Pedro. Não era o hábito do pé-no-chão que, engrossando suas solas, as faziam escapar das queimaduras. Era a fé, a crença daquela gente sugestionável, anestesiada por todas as coisas citadas em nome dos céus e da religião.
Hoje, esta véspera de São João me encontra na distância em que voluntàriamente me coloquei, lamentando em silêncio a morte da minha capacidade de deslumbramento. Eu gostaria tanto que meus olhos ainda se encantassem, acompanhando o voo dos balões até à altura em que eles se transformassem em estrelas, mas a fadiga acabou com as reservas de meninice que devemos manter pela vida afora. Os fogos me intranquilizam, os balões que se danem. Sou a favor daqueles cartazes que recomendam não soltar balões para evitar incêndios em pomares e florestas. Gostaria de ainda acreditar nas advinhações do copo, do prato fundo, da faca na bananeira, mas tudo o que esses bruxedos podiam prometer eu já fiz. Esta noite me encontro sem ternura nova, sem um novo motivo, sem heroísmo. Dela eu queria apenas a brisa fresca e silenciosa, sem as vozes dos bêbados, sem os estouros das bombas cabeça-de-nêgo. Dela eu tiraria a paz filtrada de todas as dores ocasionais, e nela armaria uma rede para dormir, esquecido de mim mesmo. Mas nem isso é mais possível. Tenho que escrever, falar, pedir, contar uma história engraçada, mentir... Perdoai-me por tantas lamúrias, mas cada um só pode dar aquilo que tem! <<<<>>>>>>>>>